O P. José Thannhuber foi o primeiro missionário salesiano martirizado nas terras de Mato Grosso. Ainda que este martírio não seja canonicamente reconhecido, a história da vida e as circunstâncias da morte do sacerdote salesiano são lembradas e celebradas como exemplos claros de doação, santidade e entrega do próprio sangue em nome da fé e pela salvação das almas a ele confiadas.
O dia 29 de agosto de 1920 foi um domingo. Por volta das 8h da manhã, logo após a Missa festiva realizada na capela da comunidade de Palmeiras
(MT), um grupo de homens armados entrou no pátio da casa salesiana fazendo todos prisioneiros. Eram os padres José Thannhuber e Pedro Viecelli, Irmão Sereno Uslenghi, o Irmão Ludovico Bruss, o familiar Humberto Zanoni e o agrimensor Arlindo Jorge, que trabalhava naquela redondeza a serviço do governo do Estado de Mato Grosso e estava hospedado com os salesianos. Eles foram mantidos presos sob ameaças intensas debaixo de uma mangueira durante todo o dia. Por volta das 4h da tarde, o líder dos agressores manda que todos comecem a caminhar para a estrada rumo a Cuiabá, distante 100 Km daquele local. A caminhada é curta, dura poucos minutos. Os passos são interrompidos pelos tiros. P. José, diretor da comunidade, jaz morto com um tiro na nuca, narra o historiador da MSMT, P. Jean Babtiste Duroure.
Sobre aquele dia, o P. José Corazza escreveu no “Esboço Histórico da Missão Salesiana de Mato Grosso” que eram 40 homens armados os criminosos, liderados por um, identificado como “Tobias”. “Entre os reféns estava o sr. Arlindo Jorge, agrimensor, que se encontrava em Palmeiras a pedido do Governo (…). Baldados foram todos seus esforços para que os salesianos fossem soltos. A resposta era: devemos esperar a chegada do Sr. Joãozinho. Falou-se que em se tratando de limites, os salesianos estavam dispostos a qualquer proposta. Tudo inútil. Os assaltantes diziam que não dependia deles, mas do tal Joãozinho, que deveria chegar a qualquer momento”.
O grupo aprisionado permaneceu isolado e privado de alimentação o dia todo. Narra o P. Corazza: “Pelo meio-dia, as irmãs enviam o almoço, que é recusado com estas palavras: “Ou comer em casa, ou comer no paraíso”. À tarde, após a função vespertina na capela das irmãs, é ordenada a retirada rumo à capital: salesianos à frente; Tobias e demais capangas atrás, em fila indiana”.
Até hoje, não se conhecem os reais motivos que levaram à ação criminosa daquele domingo, tampouco se sabe quem seria o “sr. Joãozinho” a quem se referiu o líder do bando. A principal suspeita de motivação seria a questão da demarcação de terras. “Pe. Brusadelli, em seu relato da vida do Pe. Thannhuber, afirma que as questões de limites haviam se complicado; o Sr. Ludovico Bruss testemunha que, desde o início do mês de agosto de 1920, apareceram vários capangas conhecidos por pertencer ao grupo de Tobias, para inspecionar o ritmo de vida dos trabalhos dos salesianos. Em duas oportunidades eles deixaram claro que inspecionavam, porém os salesianos jamais imaginariam que estavam preparando um crime (BRUSALDELLI, 1928, p. 47-48)”, escreveu o P. Afonso de Castro na “História da Missão Salesiana de Mato Grosso 1894 -2008”.
Já os detalhes da ação criminosa daquele domingo foram descritos pelas testemunhas e registrados pelos historiadores da Missão Salesiana. P. Jean Duroure escreveu: “Às 16h, Tobias dá ordem de marchar. Os presos, enquadrados pelos bandidos, tomam a estrada de Cuiabá. Alguns minutos e pan, pan, pan; três tiros, gritos, correria… P. José Thannhuber jaz morto com uma bala na nuca. Tobias atirou também num companheiro que tentou impedir o crime. Aproveitando a confusão, os salesianos fogem no mato. Dr. Arlindo, após constatar a morte do Padre, volta para casa. Aconselha as Irmãs a fugir a favor da noite, com suas internas. Chegou cachaça para o bando e estas onças podem se transformar em porcos”.
A descrição minuciosa dos fatos é completada pelo P. José Corazza: “Em dado momento, Tobias ordena a um dos seus: ‘mata o diretor’. À negativa, os dois travam uma luta corporal, ficando o companheiro gravemente ferido na mão. À vista do sangue, Tobias grita: “Comecei, agora mato os padres”. Levanta a espingarda na direção do Padre Thannhuber e ecoam um, dois, três tiros. O padre, que procurara refúgio entre os arbustos, cruza os braços e exclama: “Meu Deus”! Ouve-se mais um tiro e o padre jaz por terra, banhado no seu sangue. Aproxima-se dele um dos irmãos, mas o padre exala o último respiro. O irmão ajoelha-se e banha no sangue do mártir o lenço, que guarda como preciosa relíquia. Tobias ordena que todos sigam para Cuiabá, ficando o cadáver insepulto. Às oito da manhã, após andarem a noite toda, os salesianos chegam a Coxipó, comunicando a triste notícia. As irmãs também tiveram que fugir às pressas, acompanhadas pelo Dr. Arlindo e refugiando-se de quando em quando nas fazendas amigas, até chegarem a Cuiabá”.
Todos esses detalhes poderiam ser a descrição simples de um crime covarde, mas ganham contornos sobrenaturais quando confrontada com a profecia, feita por D. Miguel Rua, primeiro sucessor de Dom Bosco na condução da Congregação Salesiana. O caso aconteceu quando o ainda clérigo, estudante de filosofia, José Tannhuber, foi se despedir do Reitor-mor, D. Rua, junto com o grupo destinado às missões no ano de 1902. “Como de costume, o grupo, constituído naquela ocasião por três ou quatro Padres e clérigos e uns coadjutores, antes de partir, foi despedir-se do Reitor Maior, Pe. Miguel Rua. Este, além das recomendações de praxe, traçou também a um e outro o futuro campo de trabalho profetizando o grande bem que teriam feito. Mas quando chegou a vez do clérigo José Tannhuber, Pe. Rua se calou: insistindo o clérigo para que também lhe dissesse umas palavras sobre seu futuro, o Superior como que a custo e a contragosto respondeu só: “Domani, domani”. Tannhuber não desanimou; esperou impaciente e, no dia seguinte, se apresentou a D. Rua para saber a resposta. D. Rua então, com a alma constrangida e olhando-o suavemente, depois de uns instantes lhe disse: “Ebbene, tu preparati al martirio” (Pois bem, prepare-se para o martírio)”.
A frase dita pelo Bem-aventurado Miguel Rua ficou marcada na mente e coração do missionário salesiano. Sobre o episódio, o P. Guido Borra escreveu em 1972 para a ‘Revista de espiritualidade para leigos’, traduzida pelo P. João Bosco Maciel: “[ Pe. Thannhuber] Sendo ordenado sacerdote em 1906, continuou como conselheiro escolar e depois como vice-diretor até o final de 1909. Foi então que o Inspetor Pe. Antônio Malan lhe concedeu, não somente a licença, mas a ordem de visitar sua família na Baviera, porque lhe tinham avisado que, em determinado banco de sua cidade, um rico conterrâneo tinha depositado 25 mil marcos para o primeiro que fosse ordenado sacerdote, e o primeiro foi exatamente o Pe. Thannhuber. Foi então, retirou a soma, mas (…) relutava retornar para o Mato Grosso, porque lá somente tinha experimentado cortesias e benevolências por parte de todos e nenhuma esperança de martírio, enquanto… não conseguia tirar da cabeça a profecia do Pe. Rua. (…) Retornou e, em seguida, foi nomeado diretor de Corumbá que, na época, era a segunda cidade de Mato Grosso. (…) Terminada a guerra, em 1919, Pe. Thannhuber foi nomeado diretor de Palmeiras, uma espécie de colônia agrícola a cem quilômetros de Cuiabá, na direção das missões. Nunca se soube como surgiu e como explodiu a questão, como também quem foram os mandantes ocultos. (…) Após 18 anos… infelizmente se realizava a profecia do Pe. Rua”.
P. José Tannhuber nasceu na Baviera (Wurmanusquik) no dia 24 de novembro de 1880, recebeu o hábito clerical das mãos do Padre Miguel Rua em Foglizzo, no dia 10 de janeiro de 1901. Chegou a Cuiabá em 1903, e foi ordenado sacerdote pelo Arcebispo Dom Carlos Luis d’Amour, no dia 18 de fevereiro de 1906. Em 1909 foi enviado a Corumbá, para ser diretor da casa do Colégio Santa Tereza. Lá, com seu espirito de iniciativa, conseguiu fortalecer a obra Salesiana, construiu a ala direita do colégio e colocou os alicerces do Santuário de Nossa Senhora Auxiliadora. Conquistou a todos com seu jeito modesto, piedoso e trabalhador. P. Thannhuber foi “a vítima escolhida por Deus, a fim de que seu sangue generoso banhasse estas terras e as tornassem mais fecundas de graças para o bem das almas”, descreve a carta mortuária do missionário e mártir salesiano.
P. Thannhuber foi o primeiro salesiano a derramar seu sangue em nossas terras mato-grossenses. Mais três missionários salesianos e um indígena bororo fecundaram com seu martírio estas abençoadas terras: P. João Fuchs e P. Pedro Sacilotti (1934) e o Servo de Deus P. Rodolfo Lunkenbein e seu amigo Simão Bororo (1976).
Que esta comemoração nos fortaleça e que nunca esqueçamos os nossos mártires!
Euclides Fernandes e P. João Bosco Maciel