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“Comunicação é coisa do coração”: Segundo artigo da série “São Francisco de Sales comunicador. Peregrinação interior, sabedoria na arte de comunicar”

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(ANS – Roma) – Nesta quinta-feira, 24 de fevereiro, é oferecido aos leitores da ANS o segundo dos seis artigos escritos pelo P. Gildasio Mendes, Conselheiro Geral para a Comunicação Social, sobre o tema: “São Francisco de Sales Comunicador. Peregrinação interior, sabedoria na arte de comunicar”.

Comunicação é coisa do coração

São Francisco viveu em uma cultura e em uma sociedade marcadas por tensões religiosas, principalmente com o calvinismo e o jansenismo. O jansenismo profere que a pessoa humana nasce pecadora e nunca se torna boa sem assistência divina. Sabemos que, por exemplo, o conceito de predestinação levou São Francisco de Sales a uma profunda crise existencial. Durante muitos anos, a questão da relação entre a graça e a liberdade humana preocupou muito São Francisco. Ao passar por esta crise com abandono amoroso a Deus, abriu-se para ele uma visão nova e profundamente libertadora da relação com Deus, colocando, no centro de sua reflexão, a vida cristã como dom. A pessoa humana, ao receber este dom, responde a Deus por amor, não por medo. Portanto, viver uma vida cristã significa fazer uma peregrinação espiritual na qual a pessoa é criada, amada, escolhida e cuidada por um Deus que ama. A pessoa responde a este amor e desenvolve, assim, uma relação ativa com Deus. A pessoa que crê em Deus responde livremente a este amor e compromete-se a viver cotidianamente a vida cristã com alegria e a serviço dos outros. De acordo com este ponto de vista, a pessoa, respondendo com liberdade a este amor, se torna colaboradora de Deus em seu plano de salvação.

Partindo dos Salmos, sobretudo do Cântico dos Cânticos, Francisco faz uma interpretação sapiencial da Palavra de Deus, que transformou a sua vida. Francisco foi discípulo de Génébrard, que era fascinado pela poesia bíblica do Cântico dos Cânticos e dos Salmos. O ensinamento produziu um impacto existencial muito profundo na vida do jovem Francisco. O amor de Deus, que se manifesta como amor esponsal, místico e sapiencial constitui um ponto central da grande transformação e caminho espiritual de Francisco.

A interpretação sapiencial enfatiza que Deus quis, por amor, que o ser humano participasse da aliança deste amor. “Ora, Deus quis que o ser humano tomasse conhecimento da sua íntima qualidade espiritual (Sb 7,7; 9,1-18), aquela com a qual criou o mundo e com a qual o governa (Pr 8,22-31; Senhor 24, 3-22; Sb 8, 1), de modo que, por meio deste dom fundamental, seja dado ao homem assemelhar-se ao Criador e Senhor. De fato, é precisamente na tradição sapiencial, e precisamente em razão do dom da sabedoria, que recordamos que o homem foi criado à imagem de Deus (Sir 17,3; Sab 2,23), e que lhe é dado o poder de governar sobre a Terra (Pr 8,15-16; Sir 4,15; Sap 6,20-21; 8,14). Este novo olhar sapiencial é decisivo na visão comunicativa de São Francisco e na raiz de sua “teologia do coração”.

Considerando a luta contra a Igreja Católica e sua doutrina, as críticas dos calvinistas e um ambiente fácil para heresias, Francisco teve um grande desafio: comunicar-se de forma simples, informal, mas ao mesmo tempo segura, fiel à doutrina da igreja, para evitar interpretações pessoais e ambíguas e possíveis heresias. Francisco, portanto, foi um comunicador com grande responsabilidade pastoral e eclesial, teológica e espiritual.

São Francisco formou-se no pensamento filosófico e teológico de sua época, mas intuiu brilhantemente que a linguagem oferece uma abertura para a criatividade comunicativa por meio da riqueza de símbolos, imagens, sons, metáforas. Além disso, elegeu o Evangelho como base de sua comunicação, sabendo interpretar e utilizar a grande variedade imaginativa das parábolas e dos símbolos presentes na pregação de Jesus. Desta maneira, Francisco descobriu o poder da narrativa na comunicação, o uso das histórias, expressão de grande poder imaginativo e simbólico. Seu grande interesse pela arte, como a música e a pintura, revela um comunicador capaz de integrar o ensino da doutrina da Igreja com o Evangelho, utilizando uma linguagem acessível, artística e afetiva. Este conhecimento fez com que ele se mantivesse fiel à epistemologia e à hermenêutica da Igreja e abrisse, com base nestas, sua visão artística da espiritualidade da beleza.

Seu princípio de liberdade da pessoa humana como criatura de Deus revela uma visão de comunicação na qual a pessoa é livre e corresponsável do plano de Deus para si. A este respeito, ele costumava afirmar: “O nosso livre arbítrio não é, de forma alguma, forçado ou condicionado pela graça; ao contrário, a despeito da força onipotente da mão da misericórdia de Deus, que toca, envolve e cativa a alma com tantas inspirações, chamados e atrações, a vontade humana permanece perfeitamente livre, no controle de si mesma e fora de qualquer estado de coação…”.

Portanto, a pessoa que ama e é amada por Deus torna-se livre e abre-se à criatividade, sabendo que existe um Interlocutor, Deus, com quem se relaciona, se nutre espiritualmente e com quem constrói um projeto de vida.

Para Francisco, a Trindade, Deus Pai, Filho e Espírito Santo são uma comunidade profundamente unida no amor. A comunicação é uma relação de amizade na Trindade. Para Francisco, as pessoas participam desta amizade amorosa e luminosa com a Trindade Divina. Esta comunicação-relação inclui um caminho coerente e dinâmico de amor e comunhão em Deus, de comunicação-comunhão com os outros, de comunicação-compaixão pelo ser humano, de comunicação-caridade com relação às pessoas.

Francisco é conhecido como o santo da doçura. A doçura, em nível de comunicação, no contexto geral da sua obra, pode ser considerada como a sua grande capacidade cognitiva e afetiva de escutar o eco da vida das pessoas, na sua relação coloquial, de compreender o sentido concreto das coisas, de observar as pessoas, cuidar e proteger. A comunicação integral se manifesta, não tanto “na concepção argumentativa ou discursiva, mas busca comunicar em harmonia com a frequência das coisas, em um tom que traduza a visibilidade e a sonoridade própria das coisas”. Ao explicar como se faz um bom sermão, ele faz algumas afirmações que comprovam sua profunda inteligência afetiva: “Não posso falar de Deus sem emoção”, “é necessário que nossas palavras derivem mais do coração que da boca. É fácil falar, mas o coração fala ao coração e a língua só fala aos ouvidos”. Que cada sermão seja sempre “um sermão de amor”.

Francisco tem um grande senso de cultura popular e uma sensibilidade aguçada para o mundo real das pessoas. A formação acadêmica e clássica do bispo de Genebra não o distanciou das pessoas e da cultura popular, pelo contrário, ele, com sua grande sabedoria, soube compreender a linguagem popular, o conhecimento simples e sábio do povo, o modo de se expressar. A este propósito, costumava dizer: são “os camponeses e os que trabalham a terra” que disseram que “quando neva na quantidade certa durante o inverno, a colheita será melhor no ano seguinte” (S III 97). Como bom catequista, pregador e confessor, soube compreender a linguagem e os desejos das pessoas. Em sua época, grande parte da população não sabia ler ou escrever. Ele imediatamente percebeu como era difícil para as pessoas entenderem a doutrina da Igreja. Insistiu, então, na importância da comunicação dotada de “estilo afetivo”, capaz de tocar o coração das pessoas e emocionar (L V 117-120).

E pediu para escrever usando uma linguagem simples, para que as pessoas pudessem entender as coisas e para escrever “ao gosto deste pobre mundo”, usando meios capazes de despertar o interesse do leitor da época” (L X 219). “Sinto-me apaixonado pelas almas um pouco mais do que o habitual… Agora o coração do meu povo é quase todo meu”.

Para Francisco de Sales a relação humana deve ser natural e manifestar a espontaneidade paterna e fraterna. Tal atitude permite que o comunicador se aproxime das pessoas, despertando um sentimento de alegria. Esta forma leva à abertura e à confiança na relação e garante que a pessoa se coloque num estado de aceitação da mensagem. Na espontaneidade, as pessoas se abrem e se manifestam com gratuidade e alegria. A esse respeito, Francisco disse: “Venho agora do catecismo, onde eu e nossas crianças nos divertimos fazendo o público rir um pouco, zombando das máscaras e das danças; eu estava em um momento de bom humor, e o grande público me convidou, com seus aplausos, a ser uma criança com as crianças… Que Deus me faça verdadeiramente uma criança na inocência e na simplicidade”.

j. Comunicar é um dom e um compromisso, uma construção humana, espiritual e cultural. O estudo também é oração. Ele insiste muito, com seu clero, na necessidade essencial de formação, educação e formação sólida de seus sacerdotes. “A ciência, exortava, representa o oitavo sacramento da hierarquia da Igreja”. A partir de sua experiência de estudo e de aprofundamento científico, ele sabia que a espiritualidade do estudo era muito importante para dialogar com a cultura e responder às exigências espirituais e pastorais do contexto cultural em que vivia.

A comunicação, para São Francisco, diz respeito também ao diálogo religioso com a riqueza artística e o patrimônio cultural de seu povo. Partindo desta visão, fundou, em Annecy, com seu amigo Antoine Favre, no final de 1606, a academia “florimontana”, “porque as musas florescem nas montanhas da Saboia “.

A comunicação está a serviço da caridade. Para São Francisco, amar o próximo com caridade significa amar a Deus no homem e o homem em Deus. No contexto de seu tempo, ele se inspira na visão do Evangelho como serviço ao próximo, cuidado com os pobres e sofredores, desenvolvendo, assim, uma comunicação com uma clara opção de caridade e solidariedade. “Pronunciem com frequência estas palavras divinas do Salvador: Eu amo, ó Senhor, Pai Eterno, estas pessoas, porque Vós as amais, Vós as confiastes a mim como irmãos e irmãs e quereis que eu as ame como Vós as amais” (Carta 1173 ao Sr. de Cevron-Villette, fevereiro-março de 1616, em OEA XVII, 162).

Por meio de sua sólida formação filosófica, teológica, jurídica e da sua experiência de Deus, o Bispo de Genebra descobriu que a comunicação é a chave fundamental para viver a espiritualidade, para a evangelização e para o governo da sua Diocese.