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Celebração de funerais volta a ser feita na aldeia Boe-bororo de Meruri (MT)

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Ao contrário do que previam os diagnósticos de antropólogos e indigenistas desde o início dos anos de 1980 que apontavam para o desaparecimento da cultura Boe, a celebração dos funerais indígenas – a mais importante para a cultura bororo – volta a ocorrer na aldeia central de Meruri, mostrando que a manifestação cultural está em franco crescimento na região de Mato Grosso.

O ritual teve início em 22 de setembro e encerrou em 31 de outubro. Adriano Boro Makuda e seu irmão, Idelfonso Boro Makuda, tomaram a iniciativa de realizar o ritual de seu tio materno, irmão de Maria Pedrosa Urugureudo, sua mãe. Junto com os professores da escola Bororo de Meruri, eles conseguiram o apoio da Secretaria de Estado de Cultura de Mato Grosso para o registro audiovisual e a realização do inventário participativo, que servirá de suporte para o registro do funeral Bororo como patrimônio imaterial do Estado. Na tradição Bororo, o funeral é também o momento de iniciação dos mais jovens ao mundo adulto.

De acordo com o Salesiano Irmão Mário Bordignon, antropólogo e estudioso da cultura bororo por mais de 40 anos, o contexto histórico vivido no Brasil durante a maior parte do século XX motivou alguns procedimentos que, apesar de registrarem cientificamente a cultura bororo, acabaram por afastar os indígenas dos seus usos, costumes e até da própria língua. “Os salesianos, de um lado, procuraram estudar e entender a cultura bororo, produzindo documentos de valor reconhecido em nível mundial e, de outro lado, também acompanhava os tempos. Um exemplo prático, naquele tempo – de 1910 até 1967 – , quem falasse palavra indígena era castigado. Me disse o P. Luiz Lorensi que recebeu um telegrama de Getúlio Vargas proibindo o uso de línguas estrangeiras e nativas, um telegrama para todo o Brasil”, revela o salesiano.

A aldeia Meruri e a aldeia Garças fazem parte da Terra indígena de Meruri, situada no município de General Carneiro, no sudeste do Mato Grosso. O ritual fúnebre era, até então, realizado na aldeia Garças, e agora retorna a Meruri – 55 anos depois do último funeral ali realizado em 1966. Nas palavras do indígena bororo Gerson Enogureu: “Há mais de um século, estudiosos afirmavam, em seus livros e palestras, que a cultura Boe, principalmente aqui em Meruri, estava fadada ao desaparecimento. Hoje, porém, é notório exatamente o contrário, pois os mesmos Boe estão vivendo o funeral do ex-cacique Kuri de forma maciça e com a participação da juventude (…) até o cantor é jovem. É muito interessante observar a morada de uma cultura, não se sabe onde ela mora ou se esconde e, quando menos se espera, ela aparece com força total, unindo todos em uma mesma sintonia”, afirma o indígena.

A cerimônia funeral Bororo tem três dias centrais e é realizada cerca de três meses depois da morte da pessoa. Os ossos são desenterrados e levados para o Baíto, a casa ritual, onde são pintados e adornados enquanto família e amigos prestam homenagens ao morto e choram sua partida. A cerimônia é conduzida por cantadores, sempre os mais velhos da aldeia.

No primeiro dia, os ossos são desenterrados e preparados. No dia seguinte são queimados os bens da pessoa morta. Segundo a tradição Bororo, só assim o espírito fica livre das preocupações terrenas. Os bens são queimados pelo melhor amigo do morto, que passará a representa-lo na terra e cumprir com todas as obrigações pendentes, inclusive cuidar de sua família. Após esse momento é realizada a iniciação dos jovens.

No terceiro dia a cerimônia é realizada inteiramente no Baíto, já com a participação das mulheres, que têm a oportunidade de lamentar a morte do parente mais uma vez. Numa das partes do ritual o espírito é chamado para fazer sua última refeição na terra e conversa com os cantadores

O Ir. Mário Bordignon relata que, na Missão de Meruri, não havia a celebração do funeral, mas sempre existiu uma celebração paralela, que os missionários sabiam que existia e até, uma vez ou outra, participavam. “Só que não era oficial. Havia esta mentalidade: não havia (o funeral) na Missão, mas perto da Missão acontecia o funeral. Estamos falando da década de 1970. Quando o saudoso (Servo de Deus) P. Rodolfo Lunkenbein foi diretor em Meruri surgiu uma nova aldeia no Garças e já tinha a aldeia do Boqueirão, onde aconteciam todos os rituais, totalmente fiéis à tradição bororo, inclusive com a presença dos missionários”, revela o religioso.

“Se nós tirarmos da cultura bororo a celebração da vida dos mortos, nós desmontamos a cultura bororo. (…) Morrendo uma pessoa, há um período de mais ou menos dois meses de celebrações para mostrar ao finado que a vida continua. (…) O funeral é manifestação de vida, tanto é que no funeral tem a iniciação dos rapazes. (…) É um gesto de amor e de agradecimento”, explica o Ir. Mário.

“O povo de Meruri participava na aldeia Garças. Com o tempo, o pessoal do Garças se mudou. O povo bororo é semi-nômade. A aldeia do Garças se esvaziou. Devido a esse esvaziamento, esse funeral agora passou a ser foi feito na aldeia Meruri, onde tem a casa central. Este é um fato histórico”, conclui o missionário salesiano.

Euclides Fernandes

DRT/MS 55/02

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

* Esta reportagem contém informações retiradas do artigo da pesquisadora Marília Librandi, publicado no NEXO JORNAL, e de reportagem do site TERRAS INDÍGENAS.

** Marília Librandi  é pesquisadora afiliada ao Brazil LAB da Universidade de Princeton, e colaboradora do núcleo de pesquisa e de pós-graduação Diversitas da Universidade de São Paulo. Lecionou literatura e cultura brasileiras na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, na Universidade de Stanford, e na Universidade de Princeton. É curadora do programa 33’ Brazil Lab Review, disponível no YouTube.